Alpinista de Mutá

O início de tudo é uma conformação anti-caos. Queria dizer desse estado de coisas poéticas e poeirentas que vemos nas esquinas e seringais. Esse, do caos surgido, como resposta ao favor natural de conformar as falsas harmonias, pretende-se ao em espera do universo. Acredita poder surgir do conflito uma natureza e uma possibilidade de identidade (inda que arbitrária) que nos conduza a uma atitude de agressão ao espaço sedentário. É poesia isso. E inspira-nos Hélio Melo, autor da floresta, com sua representação do real. Conduz-nos o tempo e a sombra desse tempo, numa hora incerta a dar declarações sobre a pele do concreto e dos óbulos. Vamos caminhando, nos atrepando em árvores e rios, alpinistas de mutá, alcançado pouca coisa mais que a geometria curta dos dedos, mas sonhando extrair dali uma essência sublime para negociar a vida.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Brasil empatou com a Argentina?

Quando reduzimos todas as possibilidades de diálogo entre o universo 'brasileiro' e o universo 'argentino' ao esporte, encontramos uma concorrência infinda em que um quer ser 'melhor' que o outro. É quase uma necessidade... quase uma fobia. Mas quando comparamos outras facetas destes universos, que mais que paralelos, são cruzados, vemos que o Brasil está longe de empatar com a Argentina.
Considerada muitas vezes um país 'sub' qualquer coisa em relação ao Brasil, é muito superior em sua história de luta por melhoria de qualidade de vida num processo histórico que parece nunca ter tido um fim ou ruptura em algum momento. Apenas evoluiu, mudou, transformou-se; mas o espírito é o mesmo.
No último dia 12.05 houve mais um 'panelaço' na argentina, melhor dizendo, em Buenos Aires, na capital, no lugar que representa o melhor de qualquer país. A razão: reação à política rural adotada pela presidente Kirchner.
Nós 'brasileiros', povo 'superior' em relação à Argentina, temos uma política agrária ruim, uma política fiscal decadente, uma política das cidades que conduz à ruína, uma política de políticos podre e nunca protestamos contra tudo isto. Pensamos que está tudo tão ruim que nada podemos fazer para piorar. Reclamamos dos altos impostos, comentamos com o vizinho, com o colega de trabalho, com a família... e até com o companheiro da fila do banco onde estamos esperando a vez para pagar mais uma vez o imposto (in)devido.
Reclamamos do ônibus e do preço da passagem que continuamos pagando todos os dias; do preço dos mesmos alimentos das mesmas marcas que sempre levamos para casa em nossa feira; do horário alterado sem a oportunidade de discussão para adequar as finanças das repetdoras de grandes emissoras e ainda deixamos que digam que foi para 'corrigir' um erro ao qual já estamos muito bem adaptados há 93 anos; continuamos comprando carne de segunda ou terceira porque a de primeira tem preferência para o 'primeiro' mundo e ainda nos gabamos de ter um estado considerado área livre de aftosa.
A doença que nos impede de crescer não é a aftosa, é a apatia.
O Brasil está longe de empatar com a Argentina. Temos muito o que aprender para mudar para melhor.

Com esperança.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os condenados da terra





FRANTZ FANON (1925-1961)

Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do
colono, dado que o colonialismo significou a morte da sociedade autóctene.
Abater o colono é matar o opressor e o oprimido (Frantz Fanon)

Médico psiquiatra. Natural da Martinica e formado em Lyon. Médico na Argélia em 1953, demite-se em 1957 e passa para a Tunísia, juntando-se à Frente de Libertação Nacional. Torna-se argelino, participando na guerra da independência da Argélia entre 1954-1962. Ministro da informação do governo provisório da República Argelina. Um dos principais teóricos dos movimentos ditos de libertação nacional do chamado Terceiro Mundo. Considera, numa perspectiva psiquiátrica que a descolonização é sempre um fenómeno violento, a expressão de uma necessidade psico-sociológica, prenchendo uma dupla função: libertação em face do opressor e reconhecimento de si mesmo. Porque para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono, dado que o colonialismo significou a morte da sociedade autóctene. Abater o colono é matar o opressor e o oprimido. Acaba por morrer de leucemia, mas em Washington, depois de, primeiro, a tentar tratar em Moscovo.
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Os comentários possíveis ao livro de Fanon fogem por muito à ordem do pitoresco. Se inscrevem na ordem das contestações do poder e dão um novo fim às dicotomias inscritas na opção do colonizado que aceitar o poder dominante ou de negá-lo com revoluções que mantêm as estruturas da dominação. Fanon se coloca num dominio que assuta, mas que ao mesmo tempo é reflexo da única atitude digna possível: a violência.
Fanon não se contenta apenas com uma análise puramente econômica do imperialismo. Ele teoriza também o conflito identitário e cultural, tentando mostrar que os verdadeiros condenados da terra, os que são explorados absolutamente, são os colonizados.
Baseado não somente na teoria, mas adotando uma abordagem da experiência pessoal, Fanon observa as consequências de anos de submissão do povo e da "colonização do ser", como mesmo escreve.
Para se colocar contra a ordem estabelecida, o autor afirma que é preciso negá-la em absoluto, inclusive dentro de si mesmo. Não se pode apenas tomar o poder e reproduzir a ordem do colonizador contra o próprio povo, como fizeram os Estados Unidos, que se tornaram uma nova Europa. Fanon não quer transformar a Argélia numa nova Europa. Por isso mesmo, o triunfo da descolonização depende de vários fatores, um deles é a violência. O colonizado, por isso, desde sempre, deve estar preparado para a violência.
Esse é o ritmo do livro, escrito no leito de morte, e que conserva em si a inquietação dos condenados à liberdade. Leiam Fanon e comecem pensar nessa ordem de contestação.
Sobre o autor recomendo o artigo de Walter Günther Rodrigues Lippold, texto importante e que de maneira rápida nos remete ao autor e ao pensamento anti-colonização.
Fanon é atual, e através dele podemos nos reconhecer e contestar a colonização da modernidade. É com certeza uns dos melhores livros para se ler na vida.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Vende-se Identidade, quer comprar?



UMA IDENTIDADE FALSEADA, UMA QUESTÃO DE JOGO


O título do presente texto pode e deve suscitar algumas questões de ordem. A respeito do adjetivo que sucede a palavra plural que observamos, não nos é intenção afirmar que existem identidades verdadeiras e falsas. O que concordamos, e disso temos certeza, é que ideologias correntes, na política de modo geral, são utilizadas para evocar uma identidade falseada, com o objetivo de consolidar ideais de exploração, expropriação e consumo capitalista. Tais ideais são impostos pela mídia governamental e divulgados inconscientemente pela população, que aos seus hábitos, costuma incorporar os produtos que o Estado preparou para o consumo: o uso de bonés, camisetas, adesivos, lugares públicos e atitudes de nacionalismo-identitário. Tudo isso faz girar uma engrenagem do bem estar coletivo, adepto da sustentabilidade enquanto elo de manutenção de um capitalismo hipócrita e egoísta. Uma engrenagem que conforma os menos favorecidos, inculcando uma ideologia de sistema, de estrutura que mantém e sempre manterá uma falsa harmonia entre os diversos sujeitos que ocupam lugares no complexo jogo.
Os donos do jogo e os jogadores. São esses os personagens que vemos em função. A realidade está repleta deles. Por todas as partes desafiam e se colocam em partidas ideológicas, que têm um fim que já sabemos. A realidade em si é o caos. Sem as palavras e códigos, os mandamentos e convenções, as normas sociais e pessoais, as fazeres e saberes coletivos. E mais profundamente, os sujeitos individuais, instituições, políticas sociais, os complexos embates nos universos opostos da ideologia dos capitalistas e escravos, e todo um sistema lingüístico e cultural criado para um fim específico. Isso é o real. Não há nenhuma Matrix em questão, é matéria real de fato. Um mecanismo de jogo, com seus componentes específicos, assim como seu preço e conseqüência.
Os donos do jogo. Há sempre muito a ganhar e a perder. Se o poder de dominar e “organizar” essa realidade consumível e inconstante não for utilizado, o lugar de dono desse jogo será perdido. Outros sujeitos entrarão em questão. Por isso muitas faces se voltam a pensar essa corrente que segurará essa fera, essa sociedade em formigamento. A exemplo disso, podemos citar, e explorar, o fato comum, atualíssimo, de estratégia do governo do Estado do Acre, para criar uma atmosfera de harmonia e paz nos anos de gestão, e principalmente os eleitorais, contornando por esse mecanismo uma parcela significativa do caos gerado pela falta de outras iniciativas de gestão. Cria o governo uma idéia de identidade acreana, transplantada não sei de onde, mas que atinge e conforma o povo. Um ideal de florestania. Assim como se fez no momento de unificação e formação de alguns Estados nacionais da Europa e mesmo no início da República Brasileira, onde uma idéia dispô-se a soldar e unificar todo um aglomerado de questões complexas e disfarçar sob tal véu, questões sociais que preocupam. No caso europeu, eram as muitas línguas e culturas. No nosso, são os diversos problemas sociais como habitação, desemprego, educação, saúde e muitos outros. Assim, tudo que existe de mais importante e complexo é escondido debaixo desse status quo, de certa forma coletivo, que todos dizem desfrutar, essa paz de espírito de homens que vivem no meio da floresta, em conformação com bichos da mata, os alimentando nas praças.
Não desfruto dessa identidade falseada, que busca dá a impressão que andamos em meio as onças, nadamos com as capivaras, e que temos como bichinhos de estimação um indiozinho, esquecendo-se do fato de que milhares deles pedem esmola no centro de Rio Branco, próximo às instituições do Governo.
É o que vemos nos outdoors pelos incontáveis lugares onde o poder público não chegou. Tanto no centro, como periferia, lá estão os ditos outdoors, com fotos de índios, pousando com singeleza para uma câmera digital, sociedades inteiras e complexas reduzidas e estandartes de uma outra que as sobrepujou, e que agora, dá-lhes o direto de aparecerem em fotografias e de servirem de adesivos, bonés, camisetas e marcas de grifes para o consumo. Tratam o índio como estranho, quando sabemos que os estranhos somos nós mesmos. Intrusos nessa floresta que estava tão bem sem nossa presença. Disso surge outras questões que também não aparecem nas fotos. Enquanto que a onda florestânica nos invade, nossos tratores e moto serras invadem a floresta e tudo parece tão simples e invisível que a atmosfera de paz não se desfaz em nenhum momento. Ninguém diz que estar errado. Ninguém diz um pio sequer. E assim como se tem visto deste os anos 70, do século passado, o capitalismo é o grande jogador por trás de tudo isso, instituído por homens que ganham ótimos salários, que os “impossibilitam” de tomarem uma posição crítica sobre tais transformações. São os mantenedores do sistema, os donos do jogo, autoridades eleitas (ou não) que desviam o olhar para questões importantes frente a condições individuais de posição.
Os jogadores. Tais como os vemos nas mesas de um carteado estão aqui. Caminhamos lado a lado, os cumprimentamos na praça Da Revolução de uns, da miséria de outros, são figuras e condutores desse jogo de poder. Conduzem peças com as mãos, sem questionamentos, levam o jogo entre os dedos, equacionando as perdas e ganhos. São o que vemos na televisão, dão sorrisos e inauguram escolas antigas, realizam concursos para empregos públicos, pois, representantes da divindade egípcia, são misericordiosos e têm a grandeza de Deus.
O complexo jogo trás suas mazelas. Deformações no sistema e em suas engrenagens. É o caso de, para sua própria segurança enquanto sistema, permitir a inclusão de elementos estranhos a si em sua restrição. Pequenas parcelas que idealizam a ascensão dos menos favorecidos, super heróis que usam sementes e colares de árvores legalmente exploradas e originadas de reservas de exploração capitalista, tudo muito chique. Reservas que são poupanças do próprio capital, para um futuro próximo, quando as áreas que hoje estão aí, já não existirem. Por isso mesmo, como nunca na história desse país, os pobres são tão felizes, não por uma abstração, mas por um sentir-se privilegiado nesse ocaso. O trabalho dignifica o homem e enriquece o empresário. Poderia-se criar um livro de alforrismos como o fez Nietsche. Ou mesmo criar um novo Quixote, como vemos em Borges. Um motorista em sua Hilux, o cavalo a reboque, adesivo socialista no vidro, bandeira americana nas vestes, a carteira repleta de cheques, boa fala, bom sorriso, que sai comprando fazendas e conquistando terras de índios para assentar empresas e fábricas de árvores de natal e camisinhas de morango. Um homem culto, poliglota, que no final da história luta com animais sem se ferir, atravessa rios a nado, como um Tarzan acreano, com sua senhora de fibra de carbono e borracha duma fábrica local, a inflável e infalível Jane, a comprar sapatos no centro de Rio Branco, que por pertencer à mesma linhagem pura dos deuses do Egito, dá um real em moeda aos indígenas que pedem esmolas pelas ruas da cidade.
Esquecemos os escravos. A terceira parte do jogo que não merece ser mencionada. A que compra bonés e blusas do ACRE e usa estufando o peito por uma identidade que antes não tinha, que viu na TV e nos outdoors. Que confia nessa onda de harmonia e sutilezas, apesar dos salários pequenos e das filas nos postos de saúde. São esses os verdadeiros heróis do Quixote, sem razão, mas dotados da capacidade de servir e andar de ônibus apertados com passagens que aumentam todos os dias. Heróis que enfrentam a polícia e levam peia só por que não têm dinheiro para comer e vestir. O lado do binômio que só conta nas urnas eletrônicas. Amados e odiados pela esquerda e pela direita. Essa por saber que a quantidade é boa para se superar os adversários no 3 de outubro, aquela por saber que revoluções não levam a nada e que o povo não gosta de lutar, o povo quer paz, mesmo sofrendo o povo quer assistir novela das 8 e ver a mocinha e o bandido, vivendo emoções virtuais e controladas.
Quem quiser roubar que roube, o importante é que fez minha calçada. Uma obra para uma aventura, nosso Quixote cria seus conselheiros e protetores, consultores e assessores que o instigam a dominar a razão dos excluídos e a fazer discursos entre particulares. Como num jogo de esconde, de alguém que nunca se acha, esse ser-ser, digno do sistema e senhor dele, por 4 anos ou mais 4, certamente carente de moinhos de ventos para lutar com castanheiras e açudes para mergulhar em função de banhar as vestes sagradas de rei.
A identidade falseada se cria quando grupos institucionais se dispõem a estabelecer objetos e símbolos onde todos possam se reconhecer como iguais, pobres e ricos, acreanos do pé rachado e contas bancárias diferentes. Amém. Entre tantos rostos a união por um elo se mostra arma de condução de sociedades inteiras, na busca de se explorar interesses econômicos de uma minoria que governa. Assim estabelecem uma identidade marcada pela harmonia entre os povos da floresta, quando sabemos que o espírito de luta e transgressão é o que domina a vida e a tentativa de sobrevivência de todos.
Rejeito essa identidade que não nos dá o direito de nos inserir nela. E a nossa luta? Nossos enfrentamentos? Nossos duelos? Nossa identidade surge quando nos dispomos a nos inserir no mundo, e isso não é de forma alguma algo harmônico, é agressão e duelo, diálogo e confronto. Rejeito essa identidade que nos anula enquanto sujeitos da história, não somos símbolos de harmonia, o que nos conduz, seres humanos todos é a identidade que nos constituiu, e não a que nos expõe alguém que não nos conhece.


domingo, 8 de junho de 2008

Hélio Melo 1

Para Hélio Melo o Mutá ( ou Jirau ) é usado em duas situações: a primeira é quando a seringueira escalda e o seu látex desaparece da parte trabalhada, e a segunda é quando o seringueiro trabalha há muitos anos cortando em cima do velho corte e este afina a casca da seringueira, diminuindo sua quantidade de leite. Para isso é preciso cortar mais acima, longe da estatura do homem da floresta, e faz-se então uma estrutura com troncos de árvores e cipós. Muitos morreram tentando surbir esse Mutá, homens que madrugadas a dentro dos anos deram suas vidas por um líquido precioso, sempre em busca da sobrevivência precário dos seringais.
Para nós, o Mutá é símbolo desse homem em busca, elaborando planos de sobrevivência, confirmando sua vida com a floresta, e longe de qualquer afirmação de origem nacionalista de possíveis críticos, afirma uma condição de afirmação do homem, não do Estado, embora essas duas condições podem estar associadas.


Nosso idéal é a discussão em torno dessa cultura, suas ferramentas e homens. Como cada uma constrói sua identidade nessa multiplicidade de esferas e domínios onde somos tão pequenos. Por isso mesmo Hélio Melo nos conduz nesse primeiro passo, nos colocando outros horizontes e estradas, cortando caminhos e nos encontrando umas vezes para negociar o que o tempo e o esforço nos trouxe.
Por isso mesmo insisto no homem, ferramenta de agressão ao que fazem dele. Instrumento de ordenação de um caos posto. Modelo de ação, arbitrário, de como devemos ou não permanecer em espera. Caminhado nessas estradas de seringa e asfalto, entre o concreto e o macio chão das folhagens quase podres, uns dizendo algo, algo sem rumo, a precisar endireitar-se com o processo, num empreendimento anarquico de ódio e paixão.

Diversos são os caminhos a seguir. Muitos já não levam a nada. Já existe uma poesia sem sentido e sem amor. Uma lógica instrumental de mecanismos imprecisos e ocultos. Uma lei sem escrito. Um ~ sem palavra alguma. Nessa estrada deixamos pessoas e armas, instrumentos de matar e dar comida. Só sei que foi difícil saber que sabemos tudo e que não somos as pessoas que fariam alguma coisa.
Hélio Melo nos conduz a nós mesmos, ao centro dessa identidade sem volume e limite, fazendo assim, um existir em busca de um sentir-se agir.

A dar volume ao impossível
o improvável caso de tanta imagem
o convite foi lançado e cai entre os ouriços e corpos
estamos aqui e precisamos saber
que estamos
entre tantos
com palavras a dizer
e uma força a agredir.