Alpinista de Mutá

O início de tudo é uma conformação anti-caos. Queria dizer desse estado de coisas poéticas e poeirentas que vemos nas esquinas e seringais. Esse, do caos surgido, como resposta ao favor natural de conformar as falsas harmonias, pretende-se ao em espera do universo. Acredita poder surgir do conflito uma natureza e uma possibilidade de identidade (inda que arbitrária) que nos conduza a uma atitude de agressão ao espaço sedentário. É poesia isso. E inspira-nos Hélio Melo, autor da floresta, com sua representação do real. Conduz-nos o tempo e a sombra desse tempo, numa hora incerta a dar declarações sobre a pele do concreto e dos óbulos. Vamos caminhando, nos atrepando em árvores e rios, alpinistas de mutá, alcançado pouca coisa mais que a geometria curta dos dedos, mas sonhando extrair dali uma essência sublime para negociar a vida.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Em Obras

estamos em construção,
aguarde
pessoas trabalhando...

ofícios literários que pesam
mais que tijolos.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O conhecimento para a evolução

Jacinto havia perdido os arquivos de sua tese de doutorado em física que passara quatro anos para concluir, da qual dependeria totalmente seu brilhante futuro profissional. Além do original em seu lap top, perda total num acidente, Jacinto ainda depositava esperanças de conseguir recuperar a única cópia existente em seu pen drive; ele não poderia fazer muitas cópias, pois tratava-se de um projeto muito ambicioso, exigindo sigilo absoluto; não poderia correr o risco de ser plagiado.

Às vias do desespero, após tentar de tudo, ter esgotado todas as possibilidades, Jacinto procura uma rezadeira que faz umas rezas com umas folhas de arruda em seu pen drive e lhe indica um cyber-terreiro – que além de terreiro era também lan house, um local místico de conexão total, plena –, para que as rezas tivessem efeito, assim como para levar uns aconselhamentos, pois neste cyber-terreiro baixam uns “cabocos” que tem pós-doutorado em microeletrônica e sistemas de informações.

Chamou a atenção de Jacinto o som transe e techno, seus estilos musicais preferidos, que as “baianas” bailavam, com seus atabaques, agogôs e outros instrumentos percussivos eletrônicos. Na sessão, os “cabocos” e “pretos velhos” lhe disseram para ir à uma determinada mata para pegar umas determinadas folhas e cipós para fazer um chá – Jacinto ainda pensou o que teria a ver o chá com seu pen drive, mas àquelas alturas para ele já valia tudo –, assim como uns insetos exóticos e uns objetos incomuns para fazer umas simpatias e uns rituais estranhos.

Após alguns meses repetindo constantemente essa rotina, Jacinto já não lembrava mais o que tinha ido fazer no cyber-terreiro – na verdade, não lhe importava nem um pouco. Não se preocupava mais com coisas banais como física ou dinheiro ou carreira profissional. Havia trocado a ciência material pela consciência transcendental, dominando o processo da metamorfose da carne em luz e da luz em carne.

Hoje Jacinto vive em uma outra galáxia, numa aldeia sideral onde estuda para ser xamã, mas de vez em quando ainda vem em visita a este planeta. Um de seus passa-tempos preferidos é visitar o soberano de um pequeno planeta vizinho chamado B612, com quem gosta de contemplar o pôr do sol várias vezes seguidas – como B612 é um planeta pequeno, basta se sentar um pouco mais à frente para ver o sol se pondo novamente.

Armando Pompermaier

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Esta democracia tirânica!
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A eleição para presidente dos EUA tem sido o mais novo show midiático transmitido quase que 24 horas a que somos obrigados a assistir ainda que não queiramos. Primeiro foi a morte da menina Isabela, que ainda que não mais quisesse assistir, não tinha como fugir. Um canal mostrava a reconstituição, o outro entrevista exclusiva com o pai do Nardoni, o outro, exclusiva com a mãe da menina, os outros, como não conseguiam muito mais do que isto, mostravam imagens dos outros canais com slogan das outras emissoras e tudo o mais.
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O próximo episódio coisificado foi o do seqüestro terminado em morte da jovem Eloá. Técnicos e peritos explicando o que não podia ser explicado, analisando a ação da polícia, analisando os segundos de reação ao barulho que ninguém ouvir, mas que é perceptível por uma máquina em decibéis que não entendemos. Agora é a vez do show da ‘democracia’ mundial. Não que o mundo todo ame os EUA, mas é obrigado a se interessar pelo que por lá anda acontecendo.
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Refleti sobre alguns pontos que considero importantes neste assunto. A visão internacional sobre uma eleição local nunca é a expressão da verdade em todas as suas nuances. Lembro que o mundo via com bons olhos a eleição de Lula, como se fosse um marco para o país. O grande esquerdista defensor da moral e dos bons costumes da democracia. O mundo não sabia dos contextos e dos embates internos e nada falava sobre isto. Não sabia das fraquezas de Lula, que depois vieram a ser demonstradas na aplicação que ele fez da cartilha do FHC, indo até além e fazendo o que FHC não poderia fazer, reformas que dependiam de apoio dos sindicatos, que agora, apoiadores de Lula, permitem que sejam feitas, vergonhosamente, eliminando os direitos dos trabalhadores e chamando isto de progresso.
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A mídia quer nos ensinar que a democracia, a santa democracia ensinada pelos americanos ao mundo, é o melhor negócio do século. Esta democracia tem seus incoerentes congruentes. Somos democráticos, mas aqui somos obrigados a votar ou, no mínimo, justificar e dizer onde estávamos e porque não votamos. Somos democráticos, mas pagamos muitos IMPOSTOS, que herdaram seus nomes da imposição sem direito a discussão. Somos democráticos, mas não podemos falar muito dos defeitos e problemas dos governantes senão nossas esposas são remanejadas de setor, nossos filhos são transferidos de sala, nós somos proibidos de prestar serviço para órgãos estaduais e municipais em licitações de cartas, se não marcadas, pré-definidas. Somos democráticos, mas não temos acesso à tecnologia da saúde sem plano privado, nem previdência segura sem plano privado, nem à justiça sem uma boa dose de patrocínio a órgãos que já são pagos com o dinheiro do nosso IMPOSTO.
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Temos carros e casas que são nossos, mas pagamos para poder usá-los (IPTU e IPVA). Em nosso estado, especificamente, pagamos 25% de imposto sobre tudo o que consumimos do comércio. A companhia elétrica não nos cobra pelo que usamos, mas pelo que, na média, é contabilizado. Quem souber o que isto significa, nos ajude a entender. As companhias telefônicas móveis e fixas são cada vez mais imóveis para prestar bom serviço ao consumidor – recordes de reclamação nos Procon’s da vida, que para nada servem, porque nada resolvem; ao final de um longo processo dizem: “Agora só lhe resta entrar no Juizado de Pequenas Causas”. Poderia ter feito isto desde o início.
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Assim, vivemos num Estado de Direito Democrático. Não temos direito a nada. Somos controlados em tudo. E ainda querem que nos orgulhemos disto. Esta democracia tirânica!

Com Esperença
!
WINDOWS VISTA MARX!


Para quem não quer se render às maravilhas do mundo capitalista, uma alternativa revolucionária!

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Universalismo específico: poesia como reinvenção do ser e do mundo

"Ao contrário do que afirma implicitamente a poesia de seus contemporâneos espanhóis, para nenhum... [dos escritores hispano-americanos] há uma substância original nem um passado por resgatar: há o vazio, a orfandade, a terra do princípio não batizada, a conversação dos espelhos. Há, sobretudo, a busca da origem: a palavra como fundação".
Octávio Paz

Alguns pensadores defendem que o Brasil foi mais inventado que descoberto. Os colonizadores ao invés de tentarem entender as culturas dos nativos deste continente fizeram representações destes a partir de seus interesses e visões de mundo. Inventaram também o Brasil moldando a terra conquistada a esses interesses e visões de mundo no processo de exploração da conquista. Dificilmente se poderia recuperar a maioria da riqueza das visões de mundo contidas na grande multiplicidade de culturas nativas nas especificidades de seus vigores pré-coloniais. No vácuo de uma essência perdida a ser recuperada, o poeta mexicano Octavio Paz[1] vê a palavra poética como fundadora da essência de povos latino-americanos em construção, possível apenas através da “refutação do tempo”, em meio a “todas as eternidades que nós, os homens, fabricamos”.
Na perspectiva de uma ruptura forçada com um passado inacessível ou que lhes é estranho, os povos das ex-colônias são órfãos de culturas das quais não há nem uma substância nem um passado a resgatar. É assim que a palavra poética fundadora da essência latino-americana de Residência na Terra, de Neruda, não se refere a uma “Terra histórica”, mas sim a uma “geologia mítica”, segundo Paz. É desta forma que a criação da poesia do chamado “novo mundo” encontra condições para se tornar a poesia da criação da nova subjetividade de um novo homem, quer dizer, a poesia da reinvenção do homem e do mundo, trazendo simultaneamente “todas as eternidades” herdadas dos predecessores do “velho mundo” em si.
É extremamente interessante e fecundo o conceito de cosmópolis particulares expresso por uma literatura que, por ser órfã de uma antiguidade clássica específica sua para recuperar, além de beber água nas fontes das antiguidades culturais mais diversas ainda sente uma “nostalgia do futuro” a ser construído que supra a ausência deste passado glorioso ausente. A palavra poética, nesta perspectiva, é recriação, releitura, re-significação de todas as criações, leituras e significações; é o revigoramento; é a reinvenção do “velho mundo” em retribuição à sua invenção do “novo”; é a invenção do novo mundo pleno onde o elemento antes subjugado se afirma como parte integrante do todo sob uma nova perspectiva; é uma revolução subjetiva, uma revolução do ser que cria a si mesmo.
Penso no meu Estado, o Acre, no contexto da globalização, concebido como uma cosmópolis realmente muito particular, ligado ao mundo todo por uma revolução tecnológica e imerso em populações indígenas, algumas ainda aparentemente sem contato com a pretensiosamente auto-denominada “civilização”, outras já bem descaracterizadas de seu esplendor original; porções de florestas virgens e florestas habitadas por populações de extrativistas tradicionais em disputas de terras com agropecuaristas, serralheiros, sob interferência dissimulada, direta ou indireta, de mega-empresas globais, ONG’s, governos nacional e estrangeiros, e vários outros neo-mistérios das florestas do terceiro milênio do mundo globalizado. Características e contradições de mundos novos e antigos coexistindo nas eternidades simultâneas juntas com o sentimento de orfandade da nostalgia de um futuro a ser construído, reinventando o passado e a interpretação do presente; inventando o Acre, o Brasil, a Amazônia, o Mundo, o Passado, o Presente e o Futuro; o Eu, o Outro, o Nós e os Outros.
Não se trata mais de simples antropofagismo. Este é uma fase necessária, mas inicial. Trata-se sim de seu desenvolvimento, seu ir além. Estamos falando de todas as sínteses, do hibridismo radical, profundo, pleno; a essência de um coletivo humano transtemporal e transespacial espacializado e temporalizado: um universalismo específico, interativo, dialógico!... o artista é o escritor do gênesis; é o Simon Bolívar da subjetividade; é o Lampião da consciência oprimida; o Zumbi dos quilombos que guardam nossas esperanças livres. Sua arte pode ser nosso quilombo, nosso cangaço, nossa aldeia sideral, nosso seringal astral, nosso sorriso de carnaval. Somos um universo em expansão.
Armando Pompermaier: Professor
de História, Mestrando em Letras,
poeta, compositor.


[1] PAZ, Octavio. Signos em rotação. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Saramago lança um blog!

Sobre Fernando Pessoa
José Saramago
Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas, sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou fundo com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a imagem que não era a sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: “Chamo-me Ricardo Reis”. O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: “Chamo-me Alberto Caeiro”. O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há duas sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem daqueles que exibem saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: “Chamo-me Álvaro de Campos”, mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: “Chamo-me Bernardo Soares”, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto assim que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar pediu que lhe dessem os óculos: “Dá-me os óculos” foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno - Eduardo Viveiros de Castro.

O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno

Por Eduardo Viveiros de Castro


Ao contrário do que disse o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, a Amazônia não é uma “coleção de árvores”. Estas existem nos hortos botânicos ou nos jardins de palácios. A Amazônia é um ecossistema, uma floresta composta de árvores e uma infinidade de outras espécies vivas — inclusive seres humanos, que lá estão há pelo menos quinze mil anos.

A Amazônia jamais foi um vazio humano antes da invasão européia; ao contrário, seu nadir demográfico foi alcançado após a invasão, com suas epidemias, seus massacres metódicos, seus descimentos forçados das populações nativas para fixação em missões e feitorias. E as populações indígenas encontraram, ao longo destes milênios de co-adaptação com o ecossistema amazônico (ou eco-sistemas - pois a Amazônia não é uma só, mas muitas), soluções de “sustentabilidade” infinitamente superiores aos processos truculentos e míopes de desmatamento com correntes, desfolhantes, motosserras e assim por diante.

A floresta amazônica sempre foi povoada, e nunca foi, ou não é há mutos séculos, milênios talvez, “virgem” — a maioria das espécies úteis da floresta proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território e de seus recursos. Mas do fato da floresta não ser mais virgem não se segue que seja legítimo estuprá-la. Pois é exatamente isso que se está fazendo.

A Amazônia está sim sofrendo um violento processo de agressão — digo a Amazônia, não a tal coleção de árvores —; a Amazônia inteira, suas populações tradicionais e suas miríades de espécies vivas. Um novo modelo de desenvolvimento, como tem sido reiteradamente pregado para o Brasil, , um que não seja a imitação simplória das receitas norte-européias, precisa ser um modelo que ponha a floresta no centro da equação — pois chegou-se a um momento da historia do planeta onde a vida é o valor em crise — a vida humana e não-humana. Não é mais possível fazer politica sem levar em consideração o quadro último em que toda politica real é feita, o quadro da imanência terrestre.

Usei a palavra imanência deliberadamente aqui. O ministro Mangabeira Unger falou em entrevista recente que o destino do homem é ser “grande, divino; não é ser uma criança aprisionada em um paraíso verde”; e que “todas as pessoas são espiritos que desejam transcender”. Os índios concordariam com o ministro que todas as pessoas são espíritos; talvez não concordassem com a idéia de que só os seres humanos são pessoas, mas esse é um outro problema. Com certeza, porém, não concordariam com a idéia de que todos os espiritos ou pessoas “desejam transcender”. Essa é uma afirmação que soaria aos ouvidos indígenas inquietantemente parecida com aquela que eles vêm ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam dobrar-se à mensagem divina da transcendência para se tornarem seres humanos plenos, a saber, cristãos e bons cidadãos (i.e. com muita fé e nenhuma terra). Estou falando da conversão e da catequese forçadas, às quais se juntaram a sujeição econômica e politica dos povos indígenas e uma história de etnocídio.

Os índios não estão “aprisionados em um paraíso verde” como disse o ministro. A Amazônia não é um paraíso; ao contrário, é uma laboriosa construção co-adaptativa, um sistema em equilíbrio dinâmico onde entrararam a engenhosidade técnica humana (indígena) e as infinitas engenhosidades naturais das espécies que ocupam a região. E os índios não estão aprisionados lá.
A idéia de que as populações indígenas precisam ser “liberadas”, que Mangabeira Unger expôs em certo texto recente, parece-me visceralmente equivocada. Os índios que sofrem de depressão, suicidio, alcoolismo, como lamenta o ministro, são justamente os índios que não dispõem de terras — os índios do MS por exemplo —, não os índios da Amazônia como os Yanomami, povo forte e feliz, justamente por gozar de um território à medida de suas necessidades vitais e espirituais. As áreas indígenas da Amazônia são as áreas menos desmatadas, são elas que detêm a devastação nas fronteiras do país; e elas são peça essencial no processo de regularização ou estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o paraíso da grilagem, da pistolagem, do narcotráfico, do contrabando e do subsídio.

A Amazônia tem hoje cerca de 20% de seu território desmatado — nas áreas indígenas, é menos de 1%. Em Rondônia, a situação é irreversivelmente catastrófica. Em Roraima, o que temos são arrivistas vindos do Sul surfando na onda da ditadura (integrar para não entregar), que sustentam um sistema politico local baseado na corrupção generalizada e na exploração extensiva de áreas sem nenhuma incorporação significativa de mão de obra. E ainda querem culpar os índios.

O general Heleno levantou uma lebre inexistente, e se fez porta-voz dos interesses mais retrógrados, civilizacionalmente falando, que hoje cobiçam a Amazônia. O problema da Amazônia, ou do desenvolvimento da Amazônia, não é a falta de idéias, como parece supor nosso ministro, sempre abundante em idéias, mas o excesso de interesses — o conflito de interesses, nem todos interessantes para o país. A posição do governador de Mato Grosso, que conjuga de maneira éticamente miraculosa (o primeiro eufemismo deste texto) o papel de representante de um Estado da federação, seu maior agente econômico e seu principal devastador ecológico, é repugnante, sob todos os titulos.

Naturalmente, os índios sofrem com vários problemas, muitos deles causados pela incúria dos órgaos e agências de estado que deveriam fazer respeitar seus direitos constitucionais. Mas também não se pode negar que os índios conhecem outras dificuldades de adaptação às formas socioeconômicas (e espirituais) da sociedade nacional, não porque lhes faltem oportunidades (ainda que estas lhes faltem, em muitos casos), mas porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na história um caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso — o que se poderia chamar de uma via da imanência em lugar de uma via da transcendência.

As culturas indígenas não estão fundadas no princípio de que a essência do ser humano é o desejo e a necessidade. Seu modo de vida, seu “sistema” de vida, no sentido mais radical possível, é outro. Os índios não rezam pelo sistema econômico-religioso ocidental que consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm – sempre. Outro nome desse princípio é ”capitalismo”, ou “desenvolvimento econômico”. Esta é a velha história bíblica da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-los.

O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade: a infinitude subjetiva do homem – seus desejos insaciáveis – em insolúvel contradição com a finitude objetiva do ambiente – a escassez dos recursos. Estamos no coração da economia teológica do Ocidente, como tão bem mostrou Marshal Sahlins; na verdade, na origem de nossa religião do “desenvolvimento”. Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em todos os sentidos, desnecessária. O que precisamos é de um conceito de suficiência, não de necessidade.

Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação suficiente. Os índios são os senhores da imanência. Que transcendência temos nós, os orgulhosos brasleiros, supostos representantes da Razão e da Modernidade, a oferecer a eles, neste desanimador começo de século? É mais fácil os índios nos libertarem que nós irmos libertar a eles. Pelo menos em espirito.